01/07/2011 – 08h05
DECISÃO
Doação de imóvel penhorado a filhos menores é fraude à execução quando gera insolvência do devedor
A doação de imóvel penhorado a filhos menores de idade caracteriza fraude à execução quando este ato torna o proprietário insolvente, ou seja, incapaz de suportar a execução de uma dívida. Esse é o entendimento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Diante dessa posição, os ministros decidiram afastar a aplicação da Súmula 375/STJ, que condiciona o reconhecimento da fraude à execução ao registro da penhora do bem alienado ou à prova de má-fé de quem adquire o bem penhorado.
Para o relator do recurso especial que trouxe a discussão do tema, ministro Luis Felipe Salomão, a doação feita aos filhos ainda menores do executado, na pendência de processo de execução e com penhora já realizada, configura má-fé do doador, que se desfez do bem de graça, em detrimento de credores, tornando-se insolvente. Segundo Salomão, esse comportamento configura o ardil previsto no artigo 593, inciso II, do Código de Processo Civil.
“Não reconhecer que a execução foi fraudada em situações como a dos autos, apenas porque não houve registro da penhora e não se cogitou de má-fé dos adquirentes do imóvel, é abrir uma porta certa e irrefreável para que haja doações a filhos, sobretudo menores, reduzindo o devedor à insolvência e impossibilitando a satisfação do crédito do exequente, que também, ressalte-se, age de boa-fé”, alertou Salomão.
Superada a aplicação da Súmula 375/STJ, os autores do recurso, filhos dos executados, também pediram o reconhecimento da impenhorabilidade do imóvel por constituir bem de família e porque os pais teriam outros bens indicados à penhora.
O relator destacou que o caso é de execução contra fiadores em contrato de locação, circunstância que é uma exceção à proteção de penhora prevista na Lei n. 8.009/1990, conforme consolidado na jurisprudência do STJ. Quanto à existência de outros bens penhoráveis, Salomão observou que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu que os doadores se tornaram insolventes com a doação do imóvel, conclusão que não pode ser revista sem reexame de provas, que é vedado ao STJ.
Seguindo as considerações do relator, todos os ministros da Quarta Turma negaram provimento ao recurso.
Coordenadoria de Editoria e Imprensa
RECURSO ESPECIAL Nº 953.461 – SC (2007/0114207-8) (f)
RELATOR : MINISTRO SIDNEI BENETI
RECORRENTE : PATRICK SANTOS GOMES
ADVOGADO : ALEX SANDRO SOMMARIVA
RECORRIDO : ARLEY GOMES E OUTRO
ADVOGADO : CRISTIAN ESMERALDINO FERREIRA
EMENTA
DIREITO CIVIL. VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE SEM ANUÊNCIA DOS DEMAIS. ANULABILIDADE. REQUISITOS DA ANULAÇÃO PRESENTES.
1.- Segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário, a alienação feita por ascendente à descendente é, desde o regime originário do Código Civil de 1916 (art. 1132), ato jurídico anulável. Tal orientação veio a se consolidar de modo expresso no novo Código Civil (CC/2002, art. 496).
2.- Além da iniciativa da parte interessada, para a invalidação desse ato de alienação é necessário: a) fato da venda; b) relação de ascendência e descendência entre vendedor e comprador; c) falta de consentimento de outros descendentes (CC/1916, art. 1132), d) a configuração de simulação, consistente em doação disfarçada (REsp 476557/PR, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, 3ª T., DJ 22.3.2004) ou, alternativamente, e) a demonstração de prejuízo (EREsp 661858/PR, 2ª Seção, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, Dje 19.12.2008; REsp 752149/AL, Rel. Min. RAUL ARAÚJO, 4ª T., 2.10.2010).
3.- No caso concreto estão presentes todos os requisitos para a anulação do ato.
4.- Desnecessidade do acionamento de todos os herdeiros ou citação destes para o processo, ante a não anuência irretorquível de dois deles para com a alienação realizada por avô a neto.
5.- Alegação de nulidade afastada, pretensamente decorrente de julgamento antecipado da lide, quando haveria alegação de não simulação de venda, mas, sim, de efetiva ocorrência de pagamento de valores a título de transferência de sociedade e de pagamentos decorrentes de obrigações morais e econômicas, à ausência de comprovação e, mesmo, de alegação crível da existência desses débitos, salientando-se a não especificidade de fatos antagônicos aos da inicial na contestação (CPC, art. 302), de modo que válido o julgamento antecipado da lide.
6.- Decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina subsistente, Recurso Especial improvido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Massami Uyeda votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 14 de junho de 2011(Data do Julgamento)
Ministro SIDNEI BENETI
Relator
RELATÓRIO
O EXMO SR. MINISTRO SIDNEI BENETI (Relator):
1.- P. S. G. interpõe recurso especial com fundamento nas alíneas “a” e “c” do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, Relator o Desembargador M. T. S., cuja ementa ora se transcreve (fls. 108):
ANULATÓRIA DE ATO JURÍDICO – CONTRATO DECOMPRA E VENDA DE IMÓVEL DE ASCENDENTE PARA DESCENDENTE (NETO) – CERCEAMENTO DE DEFESA ANTE O JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE -INSUBSISTÊNCIA – EXISTÊNCIA DE ELEMENTOS SUFICIENTES À PL NA CONVICÇÃO DO JULGADOR – AVENTADO LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO DOS DEMAIS HERDEIROS DO ALIENANTE – DESNECESSIDADE NA HIPÓTESE – PLEITO QUE SOMENTE VISA À DESCONSTITUIÇÃO DE CONTRATO POR INOBSERVÂNCIA DA FORMA PREVISTA EM LEI – PRELIMINARES AFASTADAS – NEGÓCIO CELEBRADO SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 – INEXISTÊNCIA DE PROVA ACERCA DA ANUÊNCIA DOS DEMAIS DESCENDENTES COM A ALIENAÇÃO PERFECTIBILIZADA – INTELIGÊNCIA DO ART. 1.132 DO CÓDIGO CIVIL (CORRESPONDENTE AO ART. 496 DO CC EM VIGOR) – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO.
“A transmissão de bens do ascendente ao descendente, se onerosa, deverá obedecer ao mandamento contido no art. 1.132 do CC/16 e, em seguida, obrigará o donatário à colacionar no inventário aquilo que recebeu (art. 1.785, CC/16). Sendo a transmissão efetuada por interposta pessoa (simulação relativa, art. 102, I, do CC/16), afigura-se nítido o propósito de burlar a lei, em flagrante prejuízo aos direitos hereditários dos demais descendentes, que ficam, assim, legitimados para pleitear a anulação do negócio” (AC nº 2005.002158-0, Desa. Maria do Rocio Luz Santa Rita).
2.- Os embargos de declaração opostos (fls. 76/79) foram rejeitados (fls. 82/85).
3.- O recorrente alega que o processo é nulo, porque a ação que visa a anular a alienação de ascendente a descendente por falta de anuência dos demais herdeiros teria como litisconsortes necessários todos os herdeiros do doador. No caso, como esses herdeiros não teriam sido chamados a integrar o pólo passivo da demanda, que caracterizaria nulidade do processo por carência de ação. Afirma que essa tese foi suscitada na contestação, mas não foi apreciada na sentença. Isso teria caracterizado “supressão de instância”, cerceamento de defesa e falta de motivação e, por conseguinte, violação dos artigos 131, 165 e 458 do Código de Processo Civil.
4.- Afirma que o julgamento antecipado da lide sem produção de prova pericial teria representaria ofensa ao artigo 330, I, do Código de Processo Civil. 5.- Sustenta que a simples ausência de consentimento dos demais herdeiros não é suficiente para anular a alienação feita a descendente. Para tanto seria preciso comprovar, ainda, a existência de simulação. O Tribunal de origem, assim não entendendo, teria malferido os artigos 496 e 1.132 do Código Civil de 1916.
É o relatório.
VOTO
O EXMO SR. MINISTRO SIDNEI BENETI (Relator):
6.- Os autores, A. G., divorciado, e sua irmã, por parte de pai, G.C. G., solteira, moveram ação anulatória de venda de um imóvel urbano, realizada pelo pai de ambos, Sebastião Joaquim Gomes a seu neto, P. S. G., solteiro, sobrinho dos autores, filho de Dirlei, irmão dos autores, o qual havia passado a residir no imóvel com o pai alienante após a morte da companheira deste, Maria Cardoso Machado, alienação essa feita por escritura pública de 18.10.2002, registrada no dia 11.11.2002, mas de que os autores somente teriam tido conhecimento quando o avô alienante deixou no imóvel o filho Dirlei e sua família, inclusive o adquirente, filho deste, quando saiu do imóvel, indo residir com a ex-esposa, Célia Machado Gomes, ao com ela reconciliar-se em novo casamento.
Têm-se os seguintes fatos e a cronologia dos atos jurídicos que segue, para o deslinde das questões em julgamento:
a) O avô vendedor, Sebastião, casou-se com Célia Machado Gomes, de quem se separou, tendo o casal tido os filhos 1) Arlei (ora autor-recorrido), 2) Célia, 3) Maria das Dores e 4) Dirlei.
b) Viveu, o avô-vendedor, Sebastião, em sociedade de fato com Valquíria João Pereira, que era proprietária do imóvel, adquirido antes da união (matrícula de 24.10.1975, fls. 41), bem como proprietária de outro imóvel no litoral, a qual veio a falecer em 21.3.1976.
c) Sebastião, o avô-vendedor, teve, com a companheira Valquíria, um único filho, Dirlei. Com o falecimento de Valquíria, em 21.3.1973, o avô-doador, Sebastião, herdou o imóvel, juntamente com o outro do litoral.
d) Valquíria veio a falecer no dia 21.3.76, de modo que o imóvel, juntamente com o outro no litoral, foi dela herdado pelo seu único herdeiro, o filho Dirlei.
e) Após a morte de Valquíria, Sebastião, o avô-vendedor, veio a constituir nova sociedade de fato com a companheira Maria Cardoso Machado, tendo, com ela, tido a filha (ora autora) Giseli Cardoso Gomes (nascida a 16.1.1978, fls. 15).
f) Dirlei, filho de Sebastião, o avô-vendedor, e da falecida companheira Valquíria, veio, por sua vez, a falecer no dia, em 8.3.1988, sem filhos, de modo que o imóvel, por ele recebido de Valquíria, juntamente com outro no litoral, foi herdado por Sebastião, o avô-alienante, posteriormente ao nascimento dos autores Arlei e Gisel (nascidos, respectivamente, a 5.1.1952, fls. 14, e 16.1.1978, fls. 15), recebendo o imóvel em inventário realizado na Comarca de Içara, fls. 30).
g) Em 18.10.2002 (fls. 17), o avô-vendedor, Sebastião, alienou o imóvel para neto (Patrick), então com 21 anos de idade (nascido a 29.1.1980, fls. 16), tendo sido a escritura pública de compra e venda de 18.10.2002, registrada no dia 11.11.2002 (fls. 17).
7.- Segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário, a alienação feita por ascendente a descendente é, desde o regime originário do Código Civil de 1916 (art. 1132), ato jurídico anulável. Tal orientação veio a se consolidar de modo expresso no novo Código Civil (CC/2002, art. 496).
8.- Também se consolidou o entendimento de que, para a invalidação desses atos de alienação é necessário, além da iniciativa da parte interessada: a) fato da venda; b) relação de ascendência e descendência entre vendedor e comprador; c) falta de consentimento de outros descendentes (CC/1916, art. 1132), d) a configuração de simulação, consistente em doação disfarçada (REsp 476557/PR, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, 3ª T., DJ 22.3.2004) ou, alternativamente, e) a demonstração de prejuízo (EREsp 661858/PR, 2ª Seção, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, Dje 19.12.2008; REsp 752149/AL, Rel. Min. RAUL ARAÚJO, 4ª T., 2.10.2010).
9.- No caso, regido pelo Código Civil de 1916, em que não há nenhuma dúvida a respeito da configuração dos três requisitos objetivos, ou seja, a dos três primeiros requisitos (a) fato da venda; b) relação de ascendência e descendência entre vendedor e comprador; (c) falta de consentimento de outros descendentes (CC/1916, art. 1132) já mais que presente a nulidade.
10.- Os demais requisitos (“d” e “f”, supra), resultantes da evolução doutrinária e jurisprudencial, operada ainda sob a regência do Cód. Civil de 1916, também também estão presentes no caso concreto dada a prática de ato anulável, contra o qual se insurgem os dois autores, na condição de prejudicados, quer dizer, impedindo, eles, a sanação da nulidade, diante do que o que de início era apenas anulável se consolida como nulo.
11.- Com efeito, a simulação de negócio jurídico de pagamento de pretenso débito atinente a transferência de parte da sociedade Tereza Gomes & Cia Ltda e a saldo de obrigações morais e materiais do avô-vendedor para com o filho, genitor do neto adquirente, não teve em seu prol nenhuma credibilidade, seja no campo probatório, visto que nenhum documento veio aos autos, como início de prova da seriedade da alegação (de forma que a ausência de credibilidade da alegação não podia autorizar produção de outras provas, não impedindo o julgamento antecipado da lide), seja porque a própria alegação veio inteiramente vazia de credibilidade, consistindo em mera referência genérica, sem pormenores ou circunstâncias, como datas, fatos, atinentes a aludidas alegações (fls. 31), descumprido, portanto, o ônus da impugnação especificada de fatos alegados na inicial (CPC, art. 302).
12.- O prejuízo aos filhos ora autores é evidente, pois, com a retirada do valor do bem do ativo patrimonial do avô-doador, passam eles, filhos, a ter patrimônio sucessível do genitor em menor monta – fato que, por óbvio, é escusado mais demonstrar.
13.- Por fim, nunca se poderia concluir pela anuência dos demais descendentes, do só fato de não haverem sido acionados como litisconsortes, ou não haverem sido consultados no decorrer do processo.
Se houvesse tal anuência, devia ela ter sido providenciada previamente à celebração do negócio jurídico de venda, ou, quando muito, para sanar o vício de anulabilidade, devia essa anuência ter vindo documentada ulteriormente, por intervenção espontânea ou juntada de declarações válidas de aludidos descendentes aos autos.
E, de qualquer forma, ainda que viesse a anuência de aludidos descendentes não participantes do processo, sempre restaria a não-anuência dos autores, irrecusável ante o próprio acionamento, a afastar qualquer conclusão de anuência.
14.- Pelo exposto, deve subsistir o julgamento do caso dado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, negando-se provimento ao Recurso Especial.
Ministro SIDNEI BENETI
Relator